Kurt Wagner / Lambchop - Homem Simples / Música Universal
Alentejo. Planície. Agosto. Uma entrevista aquecida pelo calor intenso do Verão. O mesmo calor que se ouve na afável e atenciosa voz de Kurt Wagner, que vamos ter o prazer de ouvir e sentir pela terceira vez em Portugal, em Dezembro próximo. O mesmo calor que a música dos Lambchop transmite no mais recente e (mais uma vez) brilhante álbum “Damaged”. Conclusão: a banda já atingiu o estrelato, mas o seu mentor continua a ser um homem simples. Long live Kurt Wagner.
Quando ouvi “Damaged”, a primeira coisa que me chamou a atenção foi o regresso dos Lambchop à intimidade e melancolia do maravilhoso “Is A Woman”. Esta suavidade tem alguma coisa a ver com os complicados problemas de saúde que, segundo ouvi dizer, o perturbaram nestes dois últimos anos?
Sim, em parte sim. Há de facto uma certa melancolia como acontecia em “Is A Woman”. Mas uma melancolia que não tem necessariamente a ver com doenças. O clima, o mau tempo, tudo isso me influencia. Tudo pode ser resultado de tudo um pouco...
De qualquer maneira, hoje já está livre da doença que o apoquentou?
Sim, felizmente.
Continuando com “Damaged”, neste disco a música dos Lambchop parece atingir um estado de universalidade, muito para além da prateleira country onde muitas vezes são colocados. Isto é um objectivo, ou é apenas Lambchop?
Creio que é a evolução natural dos Lambchop. Curiosamente, estamos cada vez mais coesos enquanto banda, mas somos cada vez mais individuais no som que produzimos. Não diria que é uma estratégia concertada, mas parece-me que é de facto a melhor forma de evoluir. É provavelmente a maturidade (risos)...
Como é que lida com o sucesso crescente dos Lambchop? O site Allmusic.com diz que vocês são sem qualquer dúvida a banda americana mais consistentemente brilhante e única a emergir na década de 90.
Antes de mais é muito bom ouvir falar assim de nós próprios. Quer dizer que estamos a chegar a algum lado. Mas, no meu caso pessoal, é um bocado assustador (risos). Nunca sonhei chegar onde cheguei com os Lambchop. É aquele tipo de sonho com o qual não ousamos sonhar. E depois vem a realidade e bate-nos à porta... Ainda ando a aprender a lidar com isso.
Acha que o sucesso dos Lambchop é maior na Europa ou nos EUA?
Parece-me que temos mais sucesso na Europa, tanto comercial como artisticamente.
Porquê?
Talvez porque a nossa música é muito americana (risos).
Como reage ao facto de já haver quem faça versões de músicas dos Lambchop? Estou a lembrar-me por exemplo da versão de David Byrne de “The Man Who Loved Beer”, Já a ouviu?
Ouvi e gostei muito . Para um “songwriter” não há maior alegria do que ouvir outra pessoa a cantar a nossa música. E ainda por cima o David Byrne, de quem sou fã há muitos anos.
Em 2003, numa iniciativa do Festival de Cinema de São Francisco, os Lambchop foram convidados para tocar ao vivo durante a projecção do clássico do cinema mudo, “Aurora” de Murnau. Fale-nos um pouco desta experiência.
Para além do convite, que nos deixou a todos lisonjeados, foi uma grande experiência. Proporcionou-nos um tipo de disciplina que nunca tínhamos tido. Quando tocamos ao vivo, cada concerto é diferente, porque existe liberdade para isso. Neste caso é completamente diferente. O filme é sempre o mesmo e a música deve obedecer a essa disciplina. De facto aprendemos muito. Foi excelente (NOTA: para os eventuais interessados, existe uma edição francesa em DVD do filme que inclui a música criada pelos Lambchop - www.carlottafilms.com).
Muitas das músicas tocadas durante estas performances acabaram no díptico “Aw C’Mon/ No You C’Mon”.
Sim. Para além de ter sido uma experiência gratificante por si só, também serviu para lapidar muitos dos temas que acabaram nesse álbum.
Está envolvido em algum outro projecto do género?
Do género não, mas devido a esta experiência decidimos incluir filmes na digressão de “Damaged”. As cenas são previamente realizadas, mas são misturadas de acordo com as músicas que formos tocando. As imagens são projectadas em esferas que estão penduradas no tecto e que se movem como se fossem planetas... É um bocado difícil de explicar, mas se for ao nosso concerto em Lisboa vai perceber. Vale a pena ver.
Regressando a “Damaged”, como é que surgem 17 músicos num disco que parece tão simples e etéreo?
Curiosamente, este disco começou com apenas 5 músicos em estúdio, numa atmosfera de intimidade. Aliás, sentimos que as músicas resultavam muito bem nesse formato pequeno de banda. Bem, pelo menos pequeno para os Lambchop (risos). De qualquer modo, apeteceu-me introduzir novos instrumentos e sonoridades à medida que ia tocando as músicas, e para introduzir esses instrumentos e sonoridades são precisos artistas. Daí até chegar aos 17 músicos foi um instante.
O vosso processo de gravação já está definido, ou muda de disco para disco? Quais foram as inovações introduzidas em “Damaged”?
Tentamos sempre melhorar o som de disco para disco, mas as mudanças têm a ver sobretudo com o tipo de canções que estamos a gravar para um determinado disco e as necessidades específicas que elas têm. No caso de “Damaged”, a grande inovação face aos discos anteriores tem precisamente a ver com termos começado com 5 músicos e acabado com 17. Isto é, começamos com um som base definido e fomos adicionando novas coisas ao longo das gravações.
Há muitas cordas neste disco. Porquê esta opção?
Porque eu gosto de cordas (risos)! A verdade é que costumamos recorrer a cordas de tempos em tempos e neste disco as músicas foram escritas com essa ideia em mente.
“Paperback Bible” parece um hino à simplicidade, com muita ironia à mistura, como por exemplo quando diz, “I used to think guns were used for killing people”. As palavra simplicidade e ironia são centrais no seu trabalho?
Esses são dois conceitos que me dizem muito e esta música é de facto reflexo delas. A letra surgiu através da edição de palavras e frases que ouvi num programa de rádio que basicamente falava sobre compras e como o consumismo diz muito sobre a forma como vivemos as nossas vidas hoje em dia. Uma forma simples e irónica de abordar o tema.
Como é que foi escrever uma canção para a Candi Station (“I Would Have Waited Here All Day”), que ela acabou por não gravar?
Lançaram-me o desafio e eu escrevi a música. O produtor não quis arriscar e nós acabámos por gravá-la para este disco. Depois de gravada, esse produtor, que por acaso é um amigo meu, ficou um bocado arrependido, porque a música resultou muito bem. Enfim... Confesso que a música é de facto um bocado estranha e nunca soube se a Candi gostou ou não. Nem sequer sei se ela a ouviu.
Após um caloroso conjunto de 9 temas, chegamos à parte em que as coisas ficam realmente “damaged”. Porquê este fim de disco com “The Decline of Country and Western Civilization”?
Esse tema aparece no final do disco tal como uma panela de pressão que explode no fim. Como o disco é todo mais contido, sentimos necessidade de descomprimir.
Quem é Nathan Forest que o Kurt Wagner odeia tanto neste tema?
Nathan Forest foi um general sulista muito importante durante a guerra civil americana. Além disso foi esclavagista e um dos primeiros líderes do Klu Klux Klan. Uma personagem muito pouco agradável. Há uns anos fizeram uma estátua dele aqui em Nashville que é muito feia, não só pela pessoa que representa, mas também esteticamente. A estátua está numa propriedade privada, mas vê-se do exterior, o que é claramente uma provocação. Nathan Forest representa aquilo que há de pior na América e daí o título da música. É um sinal da nossa decadência colectiva.
Apesar desta demonstração de “ódio” em “The Decline of Country and Western Civilization”, o Kurt Wagner tem alguns heróis?
Tenho, mas os meus heróis são pessoas individuais e desconhecidas do grande público. Os meus amigos, pessoas optimistas e de espírito humano puro...
O que é que gosta mais na América, agora que o seu país está tão mal visto no mundo?
Essa é uma pergunta mais difícil do que parece. Costumam perguntar-me mais vezes aquilo que não gosto na América... Acredito que o problema é que a maioria das pessoas não é representada pelo governo que temos, composto por um grupo de idiotas muito poderosos. O problema é o nosso sistema eleitoral... Mas não estou a responder à sua pergunta (risos)... O que eu gosto na América... Não há assim nada em particular. Eu sou igual aos outros. Gosto do sítio onde nasci e cresci. As pessoas, as árvores, o ar...
Para finalizar, como é que descobriu os Hands Off Cuba? Sei que eles fazem parte da vossa tourné, mas tocam sozinhos ou integrados na banda?
Os Hands off Cuba fazem parte da banda. Foi o William Tyler que os descobriu. O Ryan Norris e o Scott Martin, que também são naturais de Nashville, são muito boas pessoas e têm um som único. São novos e têm o mundo inteiro à frente deles. Ainda nem sequer editaram um disco próprio.
Tive a felicidade de estar nos dois concertos dos Lambchop em Lisboa até à data. O primeiro, com “Is A Woman”, foi muito intimista e arrepiante. O segundo, com “Aw C’Mon” and “No You C’Mon” foi uma enorme festa. O que podemos esperar de diferente da terceira viagem a Lisboa dos Lambchop em Dezembro?
Acho que podem esperar uma combinação das experiências vividas nesses dois concertos. Sinceramente, espero que seja uma noite maravilhosa, mas ainda não posso dizer muita coisa porque ainda estamos em Agosto e o concerto é só em Dezembro. Até lá ainda vamos fazer estragos em muitas outras cidades (risos).
Lambchop
“Damaged”
2006 – Merge Records
Como é que os Lambchop conseguem continuar a ser novidade depois de 20 anos de actividade? Há sem dúvida a personalidade contagiante e a visão musical única de Kurt Wagner, corpo e alma do projecto. Mas também há a música de toda uma banda oriunda de Nashville, Tennessee, que já se tornou ícone do novo country americano. Música que é cada vez menos country e cada vez mais Lambchop. E como é que os Lambchop chegaram a este estatuto de universalidade? Se calhar foi logo de início. “How I Quit Smoking” (1996) já revelava muita da genialidade de um colectivo de músicos que se pode expandir entre 5 e 17 músicos, conforme as ocasiões. “Thriller” (1997) e “Nixon” (2000) foram outros passos decisivos. O épico tema “Up With People” deste último chegou mesmo ao sucesso comercial. O novo milénio trouxe a confirmação, com o maravilhoso “Is a Woman” (2002) e o múltiplo “Aw Cmon / No You Cmon” (2004). A discografia é muito mais extensa e o brilhantismo também. O nono disco, “Damaged”, é apenas a confirmação de um percurso feliz e muito mais. “Damaged” é Lambchop no seu mais melancólico. É Kurt Wagner em versão intimista. É a prova final (esperemos que não...) de que estamos perante música que ultrapassa fronteiras, com viagens pelo pós-rock, pelo soul, pelo R&B e até pelo lounge, continuando sempre a ser profundamente americana. Basta ouvir a abertura (“Paperback Bible”) e o final (“The Decline Of Country And Western Civilization”) para descobrir a pólvora. Os restantes 8 temas que navegam pelo meio completam um disco para ouvir vezes sem conta. Até porque este é daqueles que não entra à primeira, o que geralmente só acontece com os grandes discos. Aqueles que ficam na memoria.
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